Por
Rogerio Ruschel (*)
Arqueólogos brasileiros encontraram resquícios de uma fábrica
de vinhos artesanais da primeira metade do século XX no sítio arqueológico Chácara
Cayres, no município de São Bernardo do Campo distante 20 quilometros de São
Paulo, a maior metrópole da America Latina. O antigo proprietário, Sr. Aurélio Fonseca Fernandes Cayres, nascido em Portugal, utilizava a chácara para lazer familiar mas produzia
uva e vinho com tecnologias importadas: experiência portuguesa, barris de
carvalho francês e garrafas européias de grés. De acordo com os arqueólogos, a
adega pesquisada mostra resquícios de ter possuído até 32 barris e quatro tonéis
(veja imagens abaixo) e o tipo de vinho poderia ser o famoso “vinho verde”
português. Pesquisa
da arqueóloga Graciela de Souza Oliver (Univesidade Federal de Minas Gerais) publicado na Revista Brasileira de História
no. 54 baseado em trabalhos do engenheiro Julio Inglez de Souza
(livro “Origens do vinhedo paulista”, de 1959) e do médico e viticultor Luis
Pereira Barreto (artigos técnicos publicados entre 1896 e 1900 na Revista Agrícola)
identifica produção vinícola em cerca de 30 municípios paulistanos entre 1880 e
1900, especialmente ao longo das ferrovias Mogiana, Paulista e Sorocabana.
Entre elas São Bernardo do Campo é citada discretamente, mas não se sabe se a referência
era sobre a Chácara Cayres; por isso ela continua sendo
um “elo perdido”.
Pode ser novidade para os que pensam que foram os italianos que “inventaram”
a vitivinicultura no Brasil. Os
portugueses tinham tudo para ser os grandes produtores de vinho em nosso país,
até porque tem grande experiência - se produz e consome vinho em Portugal há
pelo menos 2.500 anos. E são grandes consumidores: nas treze caravelas que partiram de Portugal com Pedro Alvares
Cabral e chegaram ao Brasil em 1500, estavam pelo menos 65 mil litros de
vinho para consumo dos marinheiros!
Além
disso poucos foram os portugueses que introduziram a uva em nosso país;
considera-se o donatário da Capitania de São Vicente, o português Martim Afonso
de Sousa em 1532 o primeiro vinicultor em terras brasileiras, ao plantar
videiras vindas da Ilha da Madeira no litoral paulista, na verdade com pouco
sucesso devido às condições climáticas.
Mas
os portugueses optaram por cultivar cana de açúcar e especialmente no Nordeste do Brasil,
com mão de obra escrava, não só porque existia grande mercado internacional
para o açúcar e porque a cachaça era muito bemvinda nos eventos sociais, mas
também por questões de estratégia de política interna. É que para garantir a
comercialização de seu vinho para o Brasil e evitar uma eventual concorrência,
Portugal proibiu a fabricação de vinhos na colônia entre 1789 até 1808, ano da transferência da coroa portuguesa para o Brasil. Isso
permitiu que muitos nobres ficassem ricos exportando enormes toneis de vinho
português para o Brasil, como mostra a imagem de frances Debret datada de 1830, abaixo.
Hoje
pode-se achar isso um erro estratégico, mas como saber que o Novo Mundo poderia
se tornar um grande produtor mundial de vinho há mais de 300 anos atrás? Como
registro histórico deve-se dizer que desde 1650 os jesuítas produziam vinhos no
Brasil, na região sul do país, mas basicamente para consumo religioso. Mas
foi isso que aconteceu: os portugueses perderam o “bonde da história vinícola
no Brasil” e deixaram que os italianos assumissem a liderança da produção de
vinhos em terras tropicais, mesmo tendo chegado ao Brasil mais de três séculos
depois dos portugueses (a partir de 1870).
Se a família Cayres tivesse
continuado o trabalho do Sr. Aurélio depois de sua morte, talvez hoje pudéssemos
ter um pequeno e charmoso vinhedo português na Grande São Paulo, algo assim
como o pequeno e badalado vinhedo Clos de Montmartre,
perto da igreja Sacre Couer em Paris, cujos 1.556 m² foram “engolidos” pelo
crescimento da capital francesa e hoje gera receita para a Prefeitura de Paris
- veja abaixo a foto e leia o post aqui, em http://invinoviajas.blogspot.com.br/2013/05/clos-de-montmartre-o-pequeno-vinhedo.htmll
Mas nosso vinhedo “Clos de Cayres”, perdido
no tempo e na poeira do progresso, teria uma grande vantagem: estaria ao largo
da via Anchieta, uma rodovia que recebe milhares de veículos por dia, em direção
ao litoral paulista. Já pensou na oportunidade turística disso?
Como In Vino Viajas é prestigiado por muitos leitores portugueses,
publicamos a seguir trechos curiosos do artigo do arqueólogo. “Adegas, garrafas, tinas e tonéis
apontam notadamente para a função da Chácara Cayres enquanto vinícola, com a
especificidade de que estava reutilizando garrafas portuguesas para engarrafar
seus próprios vinhos, os quais, é possível, ganhavam novos rótulos em papel
(veja abaixo).
As garrafas, por sua vez, deveriam ser adquiridas de um único
fornecedor de usados (que as obtinha de fontes que importavam vinho do norte
português), figura conhecida em outras épocas como 'garrafeiro', denominação
que, no início do século XX, era atribuída às pessoas que se dedicavam a
comercializar contentores de bebidas descartados.
As marcas nas garrafas indicam que o importador no Brasil as
comprava de fabricantes localizados no norte de Portugal, como Aveiro e o
distrito de Vila Nova de Gaia, área conhecida mundialmente pela produção de
vinho do Porto (veja abaixo).
Ressalta-se que a região de Aveiro, em cujo subsolo abundam
jazidas argilosas, é também uma área tradicional de produção cerâmica em
Portugal, quer no que se refere à olaria popular vermelha ou preta, quer no que
toca à faiança e porcelana. Assim, as garrafas de 'grés salgado' (salt-glazed)
foram produzidas para a demanda local de contentores de vinho, exportadas para
diversas partes do mundo. Claro está que os produtores não concebiam, no
entanto, as dimensões alcançadas na relação entre usos pretendidos e usos reais
que estes artefatos alcançaram. Os selos das garrafas também apontam para a produção e exportação
do 'vinho verde', que advém de uma região ainda mais específica de fabrico,
igualmente no norte português. O 'vinho verde', branco ou tinto, é assim
denominado devido às características edafoclimáticas do local onde é produzido,
tendo uma concentração de ácido málico superior ao que é frequente encontrar em
outras regiões de Portugal.
Além deste selo, o material arqueológico aponta para uma fase de
crescente exportação de vinhos portugueses, a partir das políticas de fortalecimento
dos produtores locais em tempos de crise. É o que se vê na marca 'RCVNP -
Porto'. Entre os fundadores da companhia, contam-se vultos da aristocracia
vinhateira de então. A RCVNP procurava aperfeiçoar os vinhos, publicando instruções
para o melhoramento de processos de vinificação, adequados às exigências do
Mercado. Por que as garrafas,
teoricamente destinadas ao consumo de um produto, estariam acumuladas às
centenas na adega de um imigrante português em São Bernardo do Campo, no Brasil?
A presença desses artefatos permite tecer considerações em torno do reuso de
objetos e das táticas conjugadas pelos consumidores para burlar os problemas
que surgiam no dia-a-dia. Permite, ainda, aventar questões sobre os desafios,
para contextos brasileiros, das datações relativas a partir das barras cronológicas
estabelecidas por South nos anos 1970.”
Se algum leitor puder ajudar a recuperar a memória desta pesquisa arqueológica, com fatos, depoimentos pu imagens, basta entrar em contato com o editor, que ficará muito agradecido.
O artigo científico foi
publicado no Volume 8, número 1 do Boletim do
Museu Paraense Emilio Goeldi de Ciências Humanas, de Belém, Pará, Brasil, em janeiro de
2013. Imagens de
propriedade da Zanettini Arquelogia ou pesquisadas em outras fontes.
Post
publicado originalmente no blog In Vino Viajas de agosto de 2013 - acesse aqui:
http://invinoviajas.blogspot.com.br/2013/08/fazenda-dos-cayres-em-sao-bernardo-do.html
(*) Rogerio Ruschel (rruschel@uol.com.br) mora e trabalha em São Paulo, Brasil, é enófilo, jornalista, viajante
inveterado e aprecia muito - mas muito mesmo - vinhos portugueses.
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